por Danilo Matoso, arquiteto e urbanista, em 10 de novembro de 2008
www.danilo.arq.br

Na edição de 4 de novembro de 2008, do jornal Folha de São Paulo, foi noticiado que os arquitetos suíços Herzog e De Meuron seriam contratados para elaborar o projeto arquitetônico do teatro da São Paulo Companhia de Dança. A escolha da dupla premiada internacionalmente teria sido feita por meio de uma concorrência informal.

Prontificamo-nos em divulgar a notícia por e-mail, e as respostas que recebemos dos colegas arquitetos poderiam ser sintetizadas nas reações dos irmãos Ruy e Ricardo Ohtake, veiculadas no mesmo jornal no dia seguinte. Alguns lamentavam não haver sido o projeto entregue algum grande arquiteto brasileiro de mesma envergadura que os europeus – e, sim, os há. Outros alegraram-se com a possibilidade de construção em nossas terras de obra de grandes estrelas internacionais. No primeiro caso, substitui-se uma atitude patrimonialista global por outra local. No segundo caso, o patrimonialismo estaria justificado pela qualidade da obra pregressa dos autores – ou por mera mentalidade colonizada.

Sabe-se que jornalistas costumam confundir e mesmo distorcer os fatos quando se trata de noticiar obras públicas. Como desconhecem os meandros legais, burocráticos e técnicos do assunto, confundem os termos, os dados, os locais, as pessoas e acabam colocando os declarantes em situação complicada. Em todo caso, a narrativa do processo de contratação dos arquitetos não poderia ser mais infeliz:

A dupla, autora do Estádio Olímpico de Pequim (mais conhecido como Ninho do Pássaro) e da Tate Modern, em Londres, desbancou outros três escritórios internacionais de arquitetura, numa concorrência informal que contou com o aval do governador José Serra e do secretário estadual de Cultura, João Sayad.

Aqui, a falta de dados complementares ao fato noticiado pode ser um indicador de uma falha da jornalista. Afinal, não se explica o que é a São Paulo Companhia de Dança, a sua natureza jurídica, sua história, a necessidade de um edifício próprio, a escolha do lugar. Trata-se, afinal, de uma instituição pública do Estado de São Paulo criada em janeiro de 2008, e sua sede será uma obra pública – submetendo-se aos princípios da Administração Pública, dentre os quais o da impessoalidade e o da isonomia. Não pode assim ser comparada a empreendimentos privados que vêm contratando com sucesso estrelas internacionais da arquitetura, como é o caso da Fundação Iberê Camargo – em Porto Alegre, projetada pelo português Álvaro Siza e que é provavelmente a obra mais relevante da década no Brasil. Entretanto, a atabalhoada justificativa do ex-ministro parece deixar pouca margem a dúvidas quanto à natureza pessoal das decisões após a concorrência informal:

Eles são autores de projetos singulares, são arquitetos que se embrenham no ambiente em que vão fazer o projeto, o que é fundamental neste teatro. O escritório deles se mostrou muito disponível e interessado nesta empreitada. Eles vão montar uma filial aqui em São Paulo com 20 profissionais.

Vejamos o que temos aqui: a lei de Licitações e Contratos, a famosa e controversa lei 8.666/93, estabelece que o procedimento licitatório é ato administrativo formal, o que significa nada mais que os procedimentos ali descritos não podem ser realizados de outro modo. Realizar concorrência informal, nesse sentido, seria um ato ilegal.

A licitação é inexigível, nos termos da lei – como bem lembraram os gestores públicos na matéria jornalística -, quando houver inviabilidade de competição para a contratação de serviços técnicos […] de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização”.

Esse recurso legal – que fere claramente o princípio constitucional da impessoalidade e deverá ser extinto de nossa legislação tão logo haja jurispridência qualificada sobre o tema – vem sendo usado há bastante tempo em nosso país para justificar a contratação sem procedimento licitatório de nossos heróis nacionais – e mesmo estaduais e municipais. É a reserva de mercado patrimonialista dos arquitetos do rei, mantida tal como nos tempos da colônia. São eles e seus prepostos os que rebatem a contratação de Herzog e De Meuron com um súbito nacionalismo protecionista. Perguntamo-nos aqui se um erro justifica o outro. Afinal, as naturezas singulares a que se referem João Sayad e a legislação são as mesmas? Até onde sabemos, todo ser humano possui suas singularidades, e todo bom arquiteto se embrenha no ambiente em que vai fazer seu projeto. Onde estaria o diferencial da dupla suíça, que tornaria inexigível a concorrência? Até o presente momento, essa explicação não foi dada.

Cabe lembrar, entretanto, que a mesma lei que garante a licitação e a torna inexigível em alguns casos também recomenda que os contratos de projetos arquitetônicos deverão, preferencialmente, ser celebrados mediante a realização de concurso, com estipulação prévia de prêmio ou remuneração. O concurso – modalidade de licitação prevista na lei – é a análise de mérito da obra, e não de seu autor. É o processo justo e republicano para a contratação de projetos de arquitetura pelo poder público – sobretudo os de grande envergadura.

Frente às alternativas patrimonialistas e personalistas apresentadas até agora – protecionistas ou não -, não cabe outra recomendação aqui: o concurso internacional de arquitetura é a alternativa que melhor atende aos anseios legais e culturais dos brasileiros. Somente através de um concurso internacional se garantiria a contratação dos melhores profissionais do mundo – como querem os gestores públicos – com a legitimidade, transparência e legalidade que uma obra pública desse vulto exige. Somente assim nos livraremos desse arcaísmo nacional em que consiste a contratação de empresas de arquitetura sem licitação. E pelo concurso todo cidadão deve se mobilizar.  Não apenas para dar à Companhia de Dança uma boa sede, mas para ajudar a constituir uma nova tradição no Brasil, que vá além tanto da mesquinhez da xenofobia quanto da submissão, e que de fato se equipare com o que há de melhor no mundo.