ThiagodeAndrade

O portal concursosdeprojeto.org entrevista o arquiteto e urbanista Thiago de Andrade, Secretário de Estado de Gestão do Território e Habitação do Distrito Federal (SEGETH-DF).

Formado pela Universidade de Brasília, o arquiteto e urbanista Thiago de Andrade desde cedo conciliou prática profissional, autoria de projetos e premiações com a participação em importantes fóruns da sociedade civil e do poder público que discutiam temas como o direito à cidade e planejamento urbano. Em 2013, após atuar como Diretor Cultural e Conselheiro no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-DF), entre 2010 e 2013, foi eleito presidente da entidade. Enquanto foi membro da diretoria do IAB-DF, Thiago de Andrade integrou a coordenação dos concursos públicos nacionais de arquitetura das Passagens Subterrâneas de Pedestres sob o Eixão e para o Pavilhão do Brasil na Expo Milão 2015. Já como presidente do IAB, ocupou assento no Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do Distrito Federal (Conplan). Entre outras ações promoveu o funcionamento da Comissão de Políticas Urbanas (CPU), atuante fórum com encontros semanais de discussões sobre o uso e a ocupação do território no DF. Andrade também foi premiado no concurso Nova Arquitetura de Brasília (2007) e teve trabalhos expostos na Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo e no Brazilian Design&Perspective, em Singapura. Além de ter sido júri de alguns outros prêmios e concursos públicos de projeto, em especial, a participação no Júri Nacional do Opera Prima.

O Distrito Federal é uma grande metrópole, desigual e fragmentada. O Plano Piloto, símbolo da Brasília Moderna, é apenas um bairro onde habitam menos de 10% da população metropolitana, que já chega a 3 milhões de habitantes. Quais os planos da SEGETH, no campo da Arquitetura e do Urbanismo, para enfrentar tais desafios? Qual o lugar do concurso e de outros instrumentos de promoção da qualidade da arquitetura nesses planos?

Primeiro é preciso ressalvar que, apesar das características de um bairro com 10% da população, o Plano Piloto desempenha o papel de grande centro financeiro e empregatício do Distrito Federal, atraindo cerca de 1 milhão pessoas por dia, em um movimento pendular pernicioso para a mobilidade e reforçador dessa fragmentação que você cita na pergunta. Ou seja, há uma excessiva concentração da metrópole nesse centro, que alguns querem chamar de centro histórico. Ele não é apenas um centro histórico característico e de grande valor patrimonial que extrai sua renda do turismo, como de um modo geral ocorre em diversos patrimônios mundiais da humanidade. Esse centro também se comporta como irradiador do desenvolvimento, ainda em um modelo do século XX. A cidade polinucleada, ora composta por cidades-dormitório conhecidas como satélites, hoje pode ser classificada como uma metrópole em franco processo de conurbação e em alguns casos, uma enorme metrópole linear, atravessada por uma linha que liga o centro-sul do país ao norte-nordeste. Nesse sentido, temos um plano ambicioso, construído na legislação do Zoneamento Ecológico e Econômico – ZEE, lei em vias de ser enviada à Câmara Legislativa do Distrito Federal, que será detalhado e levado a cabo na revisão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial – PDOT: tornar a Ceilândia, nossa maior cidade, a capital metropolitana dessa terceira metrópole nacional, de mais de 4,2 milhões de habitantes, chamada Brasília. Em suma, uma capital do país e uma capital metropolitana.

Imagem do projeto vencedor do Concurso para Edifícios de Uso Misto em Santa Maria – DF

Os concursos são a ponta de lança de uma grande política pública pela qualidade do ambiente construído e pela retomada ideológica do sentido transformador do projeto. Projeto entendido como síntese entre planejamento e desenho, deixando de vez, para trás, a frívola e inócua dicotomia dos anos 80 entre Desenho Urbano e Planejamento Urbano, ou ainda outra dicotomia nociva, entre a Arquitetura e o Urbanismo. Assim, estabelecemos, tanto na Segeth quanto na Codhab [presidida pelo arquiteto Gilson Paranhos, entrevistado pelo portal concursosdeprojeto.org em 2010], uma política de desenvolvimento de projetos pelo corpo técnico próprio, mas também por meio de concursos públicos nacionais. Algo que vem sendo executado com muito êxito. Já são 10 concursos elaborados pela Codhab e o concurso para o Masterplan da Orla do Lago Paranoá, que será lançado nos próximos meses. 

Em sua opinião, quais as vantagens e limitações dos concursos de arquitetura no Brasil? O que deveria mudar para que o instrumento se torne mais popular entre os gestores públicos? Afinal, apesar da preferência definida na Lei 8.666, os concursos ainda são eventos de exceção na Administração Pública.

São muitas as coisas que precisam mudar. A primeira e urgente é a falta de regulamentação da própria Lei de licitações e as jurisprudências que vêm impedindo a realização dos certames em que gestores já anuíram e iniciaram a contratação por meio da modalidade. Construiu-se um entendimento danoso de que o concurso deveria receber os projetos prontos e acabados, como se ele não fosse apenas a primeira parte de um longo processo de construção de uma obra que só deveria acabar com sua entrega definitiva e revisões. Por analogias, um prêmio (que para todos os efeitos legais, também é um concurso – nós separamos premiações de concursos como modalidade de licitação) de poesias ou redações, obviamente só pode julgar ou premiar uma obra acabada, sem desenvolvimento futuro. Já uma escultura para uma praça pública, só poderia ser avaliada em concurso por meio de maquetes, croquis, etc. Naturalmente, a autoria deve ser preservada na execução da obra a ser instalada. E mais: a obra foi escolhida para um sítio específico e é única. Assim também é a obra de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo. Começa com um estudo preliminar já passível de comparação e de conhecimento material do que se está contratando, e termina com a obra especificamente instalada em um local.

 

Imagem do primeiro lugar no Concurso para Habitação Coletiva no Sol Nascente, Distrito Federal.

Por outro lado, se há problemas de natureza de entendimentos do mundo jurídico, que desconhece a prática da profissão do arquiteto e urbanista, há também que se mudar a cultura dos próprios colegas funcionários públicos gestores e dos concorrentes, bem como a cultura dos jurados que precisam entender sua responsabilidade com a exequibilidade e atendimento radical ao edital e ao termo de referência. Todos os três grupos precisam entender que o concurso é uma modalidade de licitação e contratação, e não uma premiação, não uma efeméride cultural de celebração da própria corporação. Em suma, os gestores têm que se imbuir de tornar o processo seguro e claro, entendendo que o concurso de projetos acaba por ser a modalidade que garante a melhor qualidade no melhor prazo. Os concorrentes devem entender que o foco ali é a obra a ser construída e sua qualidade de cunho geral, ressaltando a cultural, como o que se busca como inovação ou resgate dos valores perdidos nas obras públicas. Por fim, os jurados devem assumir o compromisso de respeitar o programa, as demandas do contratante, o local do projeto e a viabilidade de todo o processo.

 

Imagem do projeto vencedor do Concurso para Habitação Coletiva em Sobradinho – DF.

Enfim, acredito que os casos de sucesso precisam superar os casos de insucesso na realização desses certames. Se por um lado há alguns casos que marcaram negativamente a realização dos concursos, por outro são inúmeros, aos milhares, os casos de insucesso no modelo tradicional de licitação pelo menor preço. Brasília destaca-se no cenário nacional pela grande quantidade de concursos feitos e suas obras executadas. A paisagem da cidade é marcada pela qualidade de vários desses projetos.

A SEGETH realizou, por meio da CODHAB, em 2016, mais concursos do que o Brasil inteiro realizou ao longo do ano. Qual sua avaliação sobre os concursos já realizados pela CODHAB nesse período? Quantos estão em fase de desenvolvimento e qual a previsão de execução das obras e de realização de novos concursos?

Por um lado nos orgulha, por outro demonstra o deserto de concursos no Brasil. Já chegamos a cerca de 10, entre realizados e finalizados e alguns prontos para serem lançados. Avaliamos que é um processo em construção que faz jus à tradição inaugurada pelo IAB-DF, em parceria com a Câmara dos Deputados em 2008, de se realizar os melhores concursos do Brasil, totalmente digitais, céleres e com transparência total. Questões do corpo de jurados e como dar volume a esses certames, de modo que deixem de ser a exceção e passem ao cotidiano da administração, ainda são as grandes questões. Já temos os três primeiros projetos prontos e entregues, completos e com orçamento e vamos iniciar em breve as primeiras obras.

A SEGETH anunciou a realização de um Concurso Internacional, como parte do Projeto Orla Livre. Audiências públicas já foram realizadas sobre o tema, com o objetivo de construir, com a participação da comunidade, o Termo de Referência do Concurso. O que a SEGETH espera da realização do concurso?

Esperamos que seja uma refundação da cidade, não do ponto de vista da arquitetura e do urbanismo, mas da cidadania. Assim, nada mais importante do que escolher um projeto de altíssima qualidade com participação da sociedade, não somente na elaboração do termo de referência, mas também compondo o júri técnico e no desenvolvimento do trabalho vencedor. O presidente nacional do IAB, Sérgio Magalhães, já declarou de forma assertiva que esse será o segundo concurso mais importante da história do país, depois, obviamente do Concurso para o Plano Piloto de Brasília. Pesquisa recente feita pela Codeplan, com quase cinco mil moradores de Brasília, mostrou que 82% aprovam como ótima e boa a ação de desocupação da Orla do Lago Paranoá. O concurso, além de garantir que a escolha seja feita por méritos e pela qualidade, ao escolher o projeto e não o profissional, visa estabelecer o Projeto Orla Livre como um planejamento de longo prazo, uma política de Estado. Acreditamos que a população, conhecendo e participando desse processo, defenderá a proposta e não deixará a iniciativa morrer.

O julgamento qualitativo é a essência dos concursos de arquitetura e também pode ser seu ponto crítico. Como a questão do Julgamento tem sido discutida nos concursos realizados pela SEGETH e pela CODHAB?

Nesse ponto, como falei, cabe uma revisão e um debate amplo e aberto com a classe dos arquitetos e urbanistas para ampliar a visão e a crítica a esse processo. Qualidade e valor não são coisas simplesmente subjetivas, mas devem ter bases muito claras e profundas. Nascem, é claro, do edital e principalmente do termo de referência, mas devem espelhar uma decisão coletiva de um júri comprometido com as regras estabelecidas e com a necessidade de execução. Projetos não executados também fizeram avançar o campo do conhecimento arquitetônico e urbanístico, mas as obras construídas é que são o nosso dever para com o serviço público e a sociedade. Em suma, a escolha e o julgamento qualitativo espelharão sempre a opinião de um grupo (jurados, organizadores e promotores do concurso), situados num determinado tempo histórico e com algumas outras contingências. Por exemplo, no auge do “boom econômico-imobiliário” houve uma queda expressiva das participações em concursos porque os profissionais estavam bastante ocupados. Hoje, em período de crise profunda, há uma concorrência enorme, o que naturalmente aumenta a chance de bons projetos ocorrerem. Mas essa escolha qualitativa e complexa é a melhor solução para a sociedade que reclama por melhor qualidade dos serviços públicos. Sem perder as bases para inovação.

Sua atuação na SEGETH decorre, em parte, de suas contribuições enquanto Presidente do IAB-DF. Como você vê o papel do IAB na organização de concursos e na promoção da qualidade da arquitetura pública Fale um pouco sobre sua experiência à frente do IAB.

Foram cinco anos: dois como diretor cultural, dois como membro do conselho superior e um como presidente, quando tive que deixar o Instituto para assumir a Secretaria. Foi uma grande experiência e, principalmente, uma grande preparação para ser Secretário, embora isso tenha sido um desvio de rumos não planejado. Explico, como arquiteto, sempre fui envolvido com a profissão e os colegas. Desde o Centro Acadêmico da FAU-UnB, percebi logo cedo que tomar posição gera conflito, reação, oposição, mas principalmente, gera a possibilidade de sair do discurso para a prática. E essa prática tem que ser reflexiva e se ancorar em teorias, ideias e grandes alinhamentos conceituais e ideológicos. Daí ela vira práxis. Em suma, quando se tem isso, as pedradas ficam mais fracas e as vidraças mais fortes. Todo esse movimento profissional, principalmente em torno do IAB, nos garantiu o alicerce conceitual e ideológico, mas principalmente uma alta capacidade de resiliência e rumos para seguir. Diversas vezes eu releio o manifesto que escrevemos pelo Direito à Cidade, a cidade para todos, para ver se o estamos cumprindo e para ter certeza de que não nos desviamos daquele horizonte. Claro, há vários meios de se atingir aquelas metas e princípios e o caminho não pode ser reto nem será linear, mas o horizonte tem que permanecer.

O país vive uma situação de crise institucional e democrática. Uma série de conquistas construídas desde a Constituição de 1988 e avanços posteriores estão sendo descartados, em vários campos: Educação, Cultura, Trabalho, Previdência, Cidadania… e no campo da Arquitetura e dos Espaços Públicos o retrocesso também é evidente, com a perda de status do Concurso, enquanto instrumento preferencial na contratação de projetos, e da desvalorização do Projeto como condição para a realização de obras públicas. Qual sua opinião a respeito?

O direito à cidade é um grande guarda-chuva que abarca tudo isso que você menciona. É na cidade, principalmente no caso brasileiro, com 86% de urbanização dentro continente mais urbanizado do mundo, que esses direitos se efetivam. Nesse sentido, estou mais para o Niemeyer, não é a arquitetura sozinha que salvará o mundo, mas a luta política por um país mais justo que tem que ser disputado no chão da cidade. Temos que colocar a mão na massa e o pé no território.


A entrevista foi concedida ao arquiteto e urbanista Fabiano Sobreira, editor do portal e revista concursosdeprojeto.org, em maio de 2017.