por Fabiano Sobreira, arquiteto e urbanista (*)
O discurso em torno de práticas ambientais, verdes, ecológicas ou sustentáveis (termo que varia conforme a “linha retórica” escolhida) definitivamente já entrou no universo da arquitetura. Pelo menos é o que se pode inferir a partir das publicações especializadas em arquitetura (nacionais e internacionais), que têm dedicado cada vez mais espaço aos “novos projetos verdes e ecológicos”, acompanhados quase sempre de anúncios publicitários de materiais e tecnologias que são vendidos como os “mais sustentáveis do mercado”, com direito inclusive a edições especiais sobre o tema.
Podemos atribuir uma parcela dessa “onda verde” a uma preocupação coletiva crescente com o meio ambiente, motivada e estimulada pela crise ambiental e energética (que parece nova, mas que é cíclica), ou a preocupações mais racionais e objetivas, como a economia de recursos. Mas outra relevante parcela – e talvez a mais forte – está relacionada ao interesse mercadológico e publicitário nos “eco-produtos”, e a arquitetura tem sido inserida como mais uma linha de produtos na prateleira.
Os empreendedores (públicos ou privados) – e também os arquitetos – descobriram que o marketing em torno do “consumo sustentável” poderia ser aplicado também à arquitetura, e que os “selos verdes” seriam uma forma de orientar o “consumidor”. Como consequência, tem-se observado na arquitetura o início de um processo que nasceu no marketing de produtos em meados dos anos 80: o greenwash. O termo se refere à estratégia de marketing utilizada (por empresas, governo, profissionais) com o objetivo de aumentar a venda e a visibilidade de um produto, baseada em uma falsa imagem ecológica ou ambiental do mesmo.
Seriam os “selos ecológicos” mais uma forma de greenwash na arquitetura ?
A grande referência internacional no que se refere à certificação ambiental de edificações e empreendimentos é o LEED (Leadership in Energy and Environmental Design), idealizado e gerenciado pelo Green Building Council (USGBC), instituição criada por representantes da indústria da construção nos Estados Unidos, com o objetivo de certificar edificações que apresentam “comprovado desempenho ambiental”. Os criadores e os defensores do LEED argumentam que se trata de uma ferramenta de certificação internacional que estimula posturas globais e sustentáveis em edificações. Os críticos acusam o LEED de greenwash, por se fundamentar prioritariamente na utilização de novas tecnologias e produtos, pela orientação ao consumo e ao mercado, pela pouca ênfase no projeto e pela ausência de uma contextualização local. Esse tipo de certificação, segundo os criticos, aborda apenas um dos aspectos da sustentabilidade (o ambiental), e ignora os outros pilares que deveriam fundamentar o conceito: cultural, social e econômico.
Um exemplo dessa tensão entre a arquitetura e a “onda verde” ocorreu na França em 2005 quando a Ordem dos Arquitetos daquele país, em reação à crescente onda de “certificação verde” que vinha afetando a produção da arquitetura, publicou documento em que anunciava sua retirada da Associação HQE (Associação pela Alta Qualidade Ambiental). A associação HQE, naquele momento, iniciava um processo de certificação ambiental de edificações na França dentro da filosofia do LEED e os arquitetos reagiram, acusando o processo de reducionista, minimalista e tecnicista, ao ignorar os aspectos culturais, sociais e econômicos relacionados ao desenvolvimento sustentável.
O concurso internacional para o Planetarium de Montréal é um exemplo de como certos concursos têm incluído de forma suspeita a questão da sustentabilidade no projeto de Arquitetura. De acordo com a página oficial do concurso, o novo edifício do Planetarium deverá atender os critérios ambientais do LEED e, obrigatoriamente, utilizar o máximo de alumínio possível (vale salientar que o patrocinador do empreendimento é a empresa Rio Tinto Alcan, uma multinacional do alumínio). Ignora-se, portanto, o impacto ambiental e econômico da utilização indiscriminada do material. Em outras palavras: o material foi definido, a certificação vai garantir a imagem verde do empreendimento e a Arquitetura… é só um detalhe.
O LEED já se espalhou por diversos países como um “franchising” internacional de certificação ambiental e já dá os primeiros passos no país, com a criação do “Green Building Council Brasil“, que em sua página já anuncia o “primeiro empreendimento com certificação LEED”. É curioso observar como a descrição do empreendimento nada menciona em relação à solução arquitetônica em essência. Por outro lado, destaca como “vantagens ecológicas do empreendimento”: captação e reuso de água; instalação de vidros isotérmicos; controle de ar condicionado individual e disponibilização de vagas especiais para veículos de baixa emissão (imagem abaixo).
Vale ressaltar que de acordo com os critérios do LEED, a inovação do projeto arquitetônico contribui com no máximo 4 pontos de um total de 69 pontos. No entanto, a escolha de “materiais ecológicos” (como aqueles produzidos pelos sócios-fundadores do GBC) e as referidas vagas especiais podem totalizar, juntos, até 14 pontos.
E no meio desse turbilhão de imagens, conceitos, produtos e propagandas, surge uma inquietação: como os concursos de projeto no Brasil têm sido afetados pela “onda verde” ?
Em pesquisa recente observou-se que a preocupação com os aspectos ambientais nos editais de concursos nacionais não é nova, e é normalmente apresentada dentro do contexto mais amplo da qualidade arquitetônica, o que parece ser um reflexo da preocupação historica na produção da arquitetura brasileira com a contextualização local e o desempenho ambiental das edificações, antes mesmo da “onda verde” surgir e se espalhar. Observou-se que a qualidade ambiental, na maioria dos editais, é mencionada ao lado de diversos outros critérios como funcionalidade, aspecto simbólico e cultural da proposta, contextualização urbana, acessibilidade, exeqüibilidade, entre outros, prevalecendo o conceito mais amplo de qualidade arquitetônica. Nesse sentido, o conceito de desenvolvimento sustentável, que inclui condicionantes sociais, culturais, econômicas, tecnológicas e ambientais, é empregado antes mesmo – e independentemente – do termo “sustentabilidade” ser apropriado pelos editais e pelos projetos .
No entanto, há exceções. Já se observam indícios de que a “onda verde” começa a afetar a formulação de editais, julgamentos e apresentação das propostas nos concursos nacionais, de forma preocupante.
Percebe-se, em alguns casos, que o termo “sustentabilidade” tem sido utilizado mais como uma estratégia de marketing institucional do que uma preocupação arquitetônica e urbana. Em alguns casos – a julgar pelos editais, regulamentos, atas do juri e projetos premiados – os concursos parecem ser concebidos prioritariamente com o objetivo de se criar uma “imagem ambiental positiva” da própria instituição promotora, deixando certa dúvida sobre a preocupação com a qualidade arquitetônica e até mesmo sobre a pertinência do empreendimento.
Um exemplo relativamente recente que pode ilustrar esse debate é o concurso realizado pela Petrobrás, em 2005, para a sede de uma das unidades de negócios da empresa, com área estimada em 30.000 m2 (o referido concurso foi objeto de diversos debates à época, dentre os quais destacamos o texto de Otávio Leonildo. Nesse mesmo período outros textos trouxeram à tona a discussão sobre os concursos de projeto, como o artigo de José Ferolla e da dupla Marcelo Barbosa e Jupira Corbucci, todos publicados no Portal Vitruvius e referenciados na seção artigos on-line deste portal) O objetivo da empresa ao realizar o concurso, segundo consta no Termo de Referência, seria de ampliar o debate público e transparente em seus projetos, (…) “rumo à modernidade, responsabilidade social e ambiental”, e a boa técnica através da concepção de um edifício que atendesse “os mais modernos conceitos de eco-eficiência e funcionalidade sendo economicamente viável e plasticamente incontestável”. Ainda de acordo com o documento, as edificações deveriam ter formas que se integrassem, sendo projetadas dentro dos conceitos que valorizassem a implantação de sistemas eco-eficientes, mantendo-se como referência tecnológica em energia e desenvolvimento sustentável.
Nas “bases” dos concursos, além do edital e regulamento, foram disponibilizados diversos documentos técnicos que procuravam orientar o arquiteto concorrente quanto a questões como eficiência energética e sustentabilidade. Até mesmo um “workshop” foi organizado pela instituição promotora em parceria com instituições acadêmicas. Observa-se, de fato, uma grande preocupação, demonstrada nos diversos documentos e atividades, com a questão ambiental e a sustentabilidade. Vale ressaltar um dos pontos que se destaca entre as recomendações apresentadas aos concorrentes: “o conjunto arquitetônico edificado deve estar inserido de forma harmoniosa e integrada com a paisagem”.
O resultado do concurso, no entanto, não deixa claro se e como esse critérios foram levados em consideração. Talvez seja apenas um reflexo da forma extremamente sintética como as atas de juri são redigidas, mas de acordo com a ata da comissão julgadora, os elementos de destaque da proposta vencedora foram: (a) a definição de uma identidade própria, exigível para a Sede da Petrobras; (b) o melhor atendimento e entendimento do Programa de Necessidades; (c) a implantação geral, que não exigirá, comparativamente, grandes intervenções na configuração do sítio; (d) a incorporação visual à via pública de áreas significativas do terreno; (e) a solução interna e localização privilegiada do Restaurante; (f) o imediato acesso de pedestres desde a via pública.
Não há indícios, no relato da comissão julgadora, sobre como o enfoque ambiental – que foi exaustivamente apresentado na documentação preliminar – foi considerado no julgamento dos trabalhos.
Além disso, a inserção harmoniosa do conjunto arquitetônico edificado e sua integração com a paisagem” parece ter sido mais um ponto esquecido no julgamento, se analisarmos as imagens do projeto vencedor (abaixo – fonte: Portal Vitruvius).
Uma das possibilidades, a mais otimista, é que a abordagem ambiental foi tão exaustiva na documentação técnica que os projetos apresentaram certa uniformidade nesse aspecto, restando ressaltar os demais valores que contribuem para a qualidade do empreendimento. Em outras palavras: todos os finalistas demonstraram as qualidades ambientais de seus empreendimentos como um fundamento, restando saber qual a “melhor arquitetura”.
Outra possibilidade, menos otimista, é que o o juri (que não participa da formulação do problema – edital, regulamento, termo de referência, programa, critérios de julgamento – aspecto a ser repensado em concursos de projeto), não se sentiu à vontade para seguir os critérios de julgamento anunciados na documentação original, e destacou os critérios de julgamento que considerava mais relevantes.
A terceira possibilidade, mais pessimista, é que toda a carga ambiental apresentada na documentação preliminar servia apenas como artifício retórico, com o propósito de disfarçar o alto impacto ambiental do empreendimento e criar uma imagem ambiental positiva para a instituição e seu projeto (afinal, tratava-se de um massivo empreendimento a ser implantado em uma das “ilhas verdes” remanescentes da cidade).
Enfim, não há mal em utilizar o concurso como estratégia de marketing e propaganda institucional. Este é, aliás, um dos argumentos em defesa do concurso, para os empreendedores públicos e privados: trata-se de um evento que apresenta grande visibilidade para o promotor e seu empreendimento. A propaganda, no entanto, precisa corresponder ao produto ou às intenções de produção e “comercialização” do mesmo. Afinal, o outro grande mérito do concurso, ao lado da visibilidade, é o debate posterior e a produção de um repertório crítico sobre um problema arquitetônico ou urbanístico particular, com a indicação de soluções possíveis.
É preciso lembrar que todo concurso parte da formulação de uma questão inicial, que se traduz na elaboração do edital, dos termos de referência e do programa e nos critérios de julgamento. Se a questão é bem formulada, há uma grande possibilidade de obter respostas (projetos) que satisfaçam a demanda inicial. Caso contrário, se a questão é mal formulada, ou se está permeada de recursos retóricos que pouco dizem sobre a real intenção da pergunta inicial, as respostas serão distorcidas. No final, o que fica é a imagem da resposta que foi dada – a Arquitetura, e esta é que será julgada. Poucos vão lembrar que em alguns casos o problema não está apenas na Arquitetura resultante, mas na formulação da questão original ou na impertinência da questão ou do programa original. Em outras palavras: a Arquitetura é responsabilizada por uma decisão de um programa e de um empreendimento que já nascem repletos de incoerências e de incongruências. Mas poucos vão saber disso, e a culpa tende a cair sobre a solução arquitetônica que foi proposta e a comissão julgadora que a escolheu.
A dúvida que fica é se a qualidade arquitetônica nos concursos de projeto, em seu sentido mais amplo, caminha lado a lado com a certificação ambiental, ou se a arquitetura – como no greenwash – é apenas um instrumento para a promoção e publicidade de empreendimentos e iniciativas que já nascem insustentáveis.
(*) o autor é Analista Legislativo da Câmara dos Deputados (Seção de Acessibilidade e Projetos Sustentáveis – Núcleo de Arquitetura) e desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Laboratório de Estudos da Arquitetura Potencial (LEAP) – École d’architecture de l’Université de Montréal sobre o tema Concursos de Projeto e Sustentabilidade. É professor e pesquisador do Dept. de Arquitetura e Urbanismo do UNICEUB, em Brasília.
Parabéns por abrir essa discussão Fabiano.
o unico consenso que devemos ter é pensar em uma postura critica e o bom senso caracteristica impar que norteia a profissão com a necessidade posta que o planeta PRECISA de profissionais que coloquem sua inteligencia criativa na busca de novos sentidos para o olhar as construções e decorações que tragam para o bojo do cotidiano soluções que respeitem a natureza e viabilizem o equilibrio necessário entre os desejos consumistas diários e o equilibrio desses desejos . as veses desejaveis apenas pelo bel prazer do luxo … que em detrimento de poucos gera um grande estrago ambiental….Penso que no mundo a inteligencia e a racionalidade que nos cerca são , sem duvida, capazes de criar novas estratégias de uma arquitetura mais sustentavel e inclusiva, em um sentido amplo da palavra. Eu ja comecei com o projeto arte renova- Sentido do Olhar- Assim vamos ampliante esse dialogo. abraços patricia magno
Muito bom Fabiano, bela abordagem. Precisamos ampliar esta discussão a nível nacional. Sustentabilidade virou palavra de ordem – poucos sabem defini-la mas a maioria a utiliza como termo politicamente correto. Acompanho Guilherme Wisnik que, em um texto publicado na Folha, descreve que a arquitetura sustentável é, em grande medida, um álibi politicamente correto para uma era de vazio ideológico.
Muito interessante a abordagem. A sustentabilidade é uma questão ainda muito incipiente, é apenas o apontamento de uma direção a ser tomada. Fica totalmente desacreditada a certificação LEED de uma obra quando não se tem para onde escoar os recicláveis, como por exempo mandar o refugo de madeira para uma fornalha certificada que fica a 200km de distancia (haja diesel!), ou então quando não existem fornecedores certificados para madeira de forma, ou ainda se todo mundo usar o cimento feito com refugo, quem vai gerar o refugo?
Do ponto de vista da arquitetura, toda essa discussão começa apontar algumas direções que a arquitetura vai naturalmente começar a tomar, os arquitetos vão ter que começar priorizar mais itens como climatização, iluminação, enfim, isso tudo vai se difundir mais e vai começar a mudar um pouco a cara da arquitetura.
Por exemplo, colocando as peles de vidro mais para o fundo das fachadas e criando elementos sombreadores estaremos criando uma linguagem mais tropical para a arquitetura… nesse tipo de partido já temos alguns exemplos não tão festejados pela “inteligentsia” mas que estão anos luz a frente de toda essa discussão, cito por exemplo o Lelé, nos seus maravilhosos hospitais.
Acho que falta um pouco de humildade nessa discussão toda, valorizar o que já temos de bom e dar uma peneirada nessa baboseira toda que vem de fora, que serve muito bem para lá….
beleza, fabiano.
a discussão atual me lembra de uma outra acontecida há alguns anos, a da certificação ISO 9000 (http://tinyurl.com/9gtznp).
agora se está transformando em fetiche (como então) algo que, na sua essência, sempre foi parte da boa arquitetura.
parabéns por abrir essa discussão.
A arquitetura inteligente, verde, sustentável, deve considerar os impactos que gera, tanto durante o projeto, como durante a obra, o uso e a manutenção da edificação. Mas além da arquitetura existem os atuais padrões de vida e consumo, e afinal, os habitantes da edificação sustentável serão sustentáveis?
Maisa,
E como a “onda verde” continua, estamos diante de um novo concurso (CREA-PR), que desta vez traz a preocupação da SUSTENTABILIDADE como “marca” do produto. O termo de referência, assim como foi o da Petrobrás, mais se assemelha a um manual de construções sustentáveis, repleto de orientações técnicas, importadas de fontes diversas.
Certamente, a intenção dos empreendedores é a melhor possível. A dúvida é: como julgar uma arquitetura que se quer sustentável, sem cair nas armadilhas usuais ?
Afinal, qual a melhor arquitetura:a verde ou a madura ?
Legal, Fabiano. Eis um bom debate sobre a questão da sustentabilidade em arquitetura.
A onda verde pode levar a distorções de conceitos e formas, bem representadas nas imagens do texto, da “casa pintada” aos “sólidos brancos” com metal e vidro. Longe de defender o “vernacular” ou “regional” como legítimas soluções sustentáveis, seria no entanto preciso ampliar o debate e discutir o que seria uma arquitetura sustentável, tanto em seus princípios como nas formas e linguagens que lhe seriam próprias, posto que não há consenso sobre a questão.