“A ambição ou o desejo de ser o primeiro, essa força que move os artistas, se degenera facilmente em inveja. Essa paixão que se alimenta sobretudo das preferências particulares perderá seu lado maligno se pudermos abrir o combate em uma arena pública, para que as diferenças entre os artistas e suas obras não seja o resultado de alguma espécie de favor ou de predileção; é isso que justifica a necessidade dos concursos públicos”.
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“Utilizamos essa palavra [CONCURSO] para expressar, na “república das artes”, a maneira por meio da qual as produções dos artistas podem ser avaliadas pela comparação de suas soluções ou propostas.
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A ambição ou o desejo de ser o primeiro, essa força que move os artistas, se degenera facilmente em inveja. Essa paixão que se alimenta sobretudo das preferências particulares perderá seu lado maligno se pudermos abrir o combate em uma arena pública, para que as diferenças entre os artistas e suas obras não seja o resultado de alguma espécie de favor ou de predileção; é isso que justifica a necessidade dos concursos públicos.
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Nada existe nem pode ser avaliado ou qualificado sem comparação. Assim, a própria natureza das coisas faz com que tudo o que se vê, tudo que pertence ao universo da ordem física e da ordem moral, faça parte de uma espécie de concurso perpétuo. Mas quando a arte não encontra espaço para produção e manifestação, a ambição, o principal motor daqueles que a exercem, acaba por induzir os artistas ao combate, a disputar a excelência, a notoriedade, e a viver entre eles em uma guerra habitual.
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A grande vantagem do concurso seria a de preservar os artistas da humilhação à qual eles se submetem diante dos empreendedores, e de evitar que as obras públicas se submetam à intriga dos homens públicos, ou à ignorância dos gestores.
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[É necessário] um sistema de contratação de obras públicas que permita premiar o talento independente de favores e que possa garantir ao povo, sob o princípio da moralidade, investimentos públicos nas artes e nos monumento que aumentem a riqueza pública, pelo preço que a qualidade estética adiciona ao trabalho da necessidade.
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A idéia do Concurso é uma dessas idéias que, por sua simplicidade, faz parte do senso comum, mas como todas as idéias desse gênero, são simples apenas em seus princípios. (…) É uma idéia simples, pois se aproxima do conceito geral de justiça. (…) É uma idéia complexa, pois a ‘jurisprudência do gosto’ sob a qual se baseiam os julgamentos nada tem de racional – surgindo então a dificuldade: que regras seguir para ser justo ? Daí surge outro problema: como definir uma comissão julgadora que seja baseada na idéia em essência dos tribunais de juri, qual seja, a imparcialidade dos juízes.
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Os concursos são ‘instituições’ que, para serem boas, devem ser consideradas mais sob o ponto de vista prático, de seus resultados, do que sob o ponto de vista teórico, de seus princípios. Vale sempre ressaltar o seu principal objetivo, que é escolher a melhor obra, mais do que conceitos abstratos como moralidade, igualdade e justiça. Esses princípios também justificam a realização dos concursos, mas por vezes esses conceitos abstratos entram em conflito com os resultados práticos que se esperam do concurso.
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Na verdade, a igualdade que se pressupõe em um concurso aberto, ao permitir a participação indiscriminada de todos, tal igualdade, ela não existe.
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O segredo do Concurso está em atrair à participação os concorrentes mais hábeis. Mas como forçar os homens hábeis e renomados em seus domínios a arriscarem sua sorte e sua reputação em um concurso? A admissão livre e igualitária de todos os artistas em um concurso é uma aplicação errônea dos princípios de igualidade. O concurso não precisa, para ser justo, de ser sempre, em todas as situações, aberto a todos. A arena não precisa ser aberta a todos os combatentes. Pode-se definir, regulamentar e modificar o número e a qualidade dos concorrentes, em cada concurso, conforme o caso.
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É necessário considerar, como parte do investimento dos artistas, o tempo dedicado à elaboração de suas obras. Que o tempo sacrificado pelos artistas que concorrem seja compensado como um “adiantamento” do investimento do empreendedor, sem mencionar os custos com a elaboração dos modelos e projetos que são elaborados para o concurso. Por outro lado, se o reembolso de todos os concorrentes passa a ser uma condição básica do concurso, o valor investido no concurso passa a comprometer o próprio investimento no empreendimento.
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Se não há reembolso dos custos dos concorrentes com o projeto, corre-se o risco de excluir tanto aqueles que têm talento e que não têm recursos para tal investimento sem retorno, quanto aqueles que têm talento e recursos, mas que não se sentiriam atraídos a participar da concorrência. Corre-se o risco de se ter um concurso com projetos de baixa qualidade, insuficientemente desenvolvidos.
Ao que parece, portanto, para se obter o equilíbrio necessário ao concurso, convém reembolsar o que foi investido pelos concorrentes, porém restringir o número de participantes.
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Mas o aspecto mais difícil da ‘instituição’ do Concurso é o julgamento. (…) Todo julgamento supõe ‘juízes’ instituídos, regras estabelecidas e uma legislação sobre as quais os membros do juri tomam suas decisões. (…) Na justiça dos tribunais, trata-se de aplicar a lei a um fato determinado, uma decisão a ser tomada por pessoas que não tenham outro interesse que não seja a própria avaliação, imparcial, do objeto a ser julgado. No julgamento das artes, no entanto, diante da excelência das obras artísticas, não há um fato racional e objetivo a ser descrito, nem há leis ou critérios objetivos. Não há julgamento natural ou imparcial.
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O talento deve ser a primeira de todas as condições necessárias para se definir um membro de juri de produções do domínio artístico; mas supondo que fora do concurso haja pessoas de talento capazes de julgar, quem deve indicá-los? Afinal, a escolha dos ‘juízes’ pressupõe também o conhecimento, um senso do que é bom e verdadeiro, uma percepção esclarecida.
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O concurso tem por objetivo principal afastar os ignorantes do processo de escolha dos artistas que devem se encarregar das obras públicas e, ao mesmo tempo, impedir que a intriga ofusque o talento. É necessário, portanto, que por um lado não haja intriga entre os artistas e, por outro, que os ignorantes não tenham o poder de escolha. Mas se os artistas são os próprios juízes, ou se eles nomeiam aqueles que tomam a decisão, instaura-se a intriga. Ao mesmo tempo, se os artistas não julgam nem nomeiam os juízes, instaura-se a ignorância.
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Os concursos devem ter como objetivo não a avaliação sobre o talento dos artistas, mas sobre o mérito dos projetos que eles apresentaram – essa é a grande dificuldade.
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O juri corre o risco, ao avaliar os projetos apresentados, a confiar a realização de um empreendimento grande e de alta dificuldade, a um arquiteto inteiramente incapaz de realizar na prática o que a imaginação ou os meios gráficos sugeriam ser possível.
Se não for possível comparar os projetos de um arquiteto às obras realizadas pelo mesmo, torna-se impossível presumir seu talento. Afinal, na arquitetura, tudo depende – mais do que imaginamos – da execução. Com frequência, todas as qualidades e méritos de um desenho desaparecem quando colocados à prova no momento da execução.
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[Por outro lado] se for necessário considerar no julgamento outros elementos além do próprio programa, como os certificados de capacidade técnica e as obras já realizadas, o espírito do concurso é afetado e se afasta consideravelmente de seu objetivo inicial, levando-nos a questionar a sua viabilidade. O concurso, nestes termos, deixaria de ser uma seleção sobre o projeto e passaria a avaliar as pessoas.
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Todas essas questões poderiam muito bem ser objeto de uma teoria dos concursos, ou de uma lei específica sobre o assunto. Neste texto, não tenho intenção de completar uma, nem de esboçar a outra. Minha intenção é apenas expor as vantagens do concurso e ao mesmo tempo mostrar os incovenientes aos quais um concurso mal elaborado e mal conduzido poderia expor as artes. [Assim], com a ajuda de um certo número de regras e procedimentos, pode-se confiar à experiência prática, à moral e à opinião pública, a tarefa de lidar – ao mesmo tempo – com a vaidade humana, os interesses artísticos e os interesses da nação que os encoraja.” (*)
As idéias acima poderiam muito bem ser o resultado de reflexões recentes sobre os concursos ou sobre a profissão do arquiteto e urbanista, ou ainda, sobre a gestão pública da Arquitetura no Brasil. Esse texto, no entanto, foi escrito em 1801 na França, por Quatremerre de Quincy, e publicado como parte da Encyclopédie Méthodique – Architecture, no verbete CONCURSOS (Tomo II, pp. 35-41). Mesmo publicada há mais de dois séculos, trata-se de uma reflexão ainda contemporânea e, por que não dizer, vanguardista. Em especial, se considerarmos as posturas públicas e profissionais sobre a contratação de projetos de arquitetura pela Administração Pública em diversos países, como o Brasil. Ao lermos o texto, somos tomados por dois sentimentos contraditórios: de um lado, a satisfação que decorre da leitura de um texto lúcido e atemporal sobre um tema caro à Arquitetura e à sociedade; por outro lado, o desalento, ao percebermos que os argumentos e as recomendações de 200 anos atrás continuam guardados, como uma relíquia, distantes dos manuais de procedimentos da gestão pública. Pelo menos, se serve como consolo: o país que em 1801 publicou o texto de Quatremere de Quincy é hoje uma referência no que se refere à gestão de obras públicas, em especial no que se refere à utilização dos concursos de projeto como instrumento de promoção da qualidade da Arquitetura Pública.
por Fabiano Sobreira, arquiteto e urbanista
(*) As referidas citações são uma seleção de notas extraídas do texto original de Quatremere de Quincy, editadas e traduzidas por Fabiano Sobreira, a partir de recomendação de leitura dos professores Jean-Pierre Chupin e Georges Adamczyk, da Université de Montréal.
Prezados Pedro e Murilo,
A escassez de concursos no Brasil reflete a ausência de uma política para a Gestão das Edificações Públicas e o distanciamento da Arquitetura das questões de interesse coletivo.
Infelizmente, nos últimos anos, todos os nossos esforços, enquanto categoria profissional, têm se concentrado na redefinição da instituição que nos deve representar (essa via sacra sem fim sobre o CREA x CAU). Enquanto isso, pouco discutimos sobre o papel do arquiteto na sociedade e quais os instrumentos para o reconhecimento do seu trabalho. Ou pior: ainda não fomos capazes de apresentar propostas sólidas que possam fundamentar uma política voltada para a Qualidade da Arquitetura na Administração Pública.
Por que ainda não propusemos, enquanto categoria profissional, um projeto de lei que obrigue os concursos para toda e qualquer contratação de projetos e que seja eliminada a Notória Especialização da lei de licitações ?
O arquiteto, enquanto profissional, é visto pela sociedade como um ser “mítico”, “dispensável”, um “artigo de luxo”, que poucos podem custear. E nós somos co-responsáveis pela criação e disseminação dessa imagem elitista.
Os concursos podem, sim, ser um caminho para o fortalecimento da profissão, mas podem também ser o caminho para a definitiva desvalorização de nosso trabalho, a julgar pela forma com que os concursos recentes têm se apresentado: baixa remuneração, orçamento incompatível, programas desconexos, comissões julgadoras sob suspeição, premiações risíveis…
E o pior é que, diante de um período em crise, da ausência de oportunidades, do número desproporcional de novos arquitetos que entram em um mercado já saturado, da ausência de concursos… acabamos nos sujeitando às “esmolas” e entrando, como sugeria Quatremere de Quincy – em 1801 (!) “nessa arena pública de combate”, nessa “guerra habitual” que são os concursos.
Por sinal, sobre a crise arquitetônica que tem acompanhado as demais crises (ética, econômica, ambiental, etc…), sugiro a leitura do texto do colega Ferolla, na revista mdc.
Em tempo: Sobre o concurso da UNICAMP, sugiro acompanhar o debate na respectiva seção deste portal. Sua observação é pertinente e está sendo debatida na seção de comentários daquele concurso O mesmo em relação ao concurso CREA-PR.
Fabiano, já me considero assíduo frequentador! Alertando que teras de nos presentear com mais um dos seus bem escritos textos, pois a UNICAMP acabou de lançar um concurso internacional, sem apoio do IAB ou da UIA, com o íncrível prêmio de 8.000 reais ao projeto vencedor. Lembro-me da minha adolescência quando viajava para Natal-RN, para jogar a concorrida Copa Natal “Internacional” de Handebol, que de internacional conseguia trazer no máximo equipes de Salvador.
Fabiano,
Parabéns pela escolha do texto, reflete claramente como os concursos são organizados ainda hoje em países como França e Espanha.
Há alguns aspectos básicos da organização de concursos que parecem estar tão claros há 200 anos, mas que infelizmente nos concursos organizados no Brasil ainda não os vemos.
– Que os concursos se dividem em abertos e restritos, sendo os abertos em geral para obras menores ou de menor complexidade. Quando abertos não se exige grande definição das propostas.
– Que em alguns concursos é necessário restringir a participação às equipes que possuam capacidade técnica demonstrada para tal, avaliando desde currículos da equipe a experiência prévia em projetos semelhantes. Na Espanha é inclusive bastante comum a exigência de seguro ou aval bancário as equipes como garantia econômica, além de que a equipe tenha redigido projetos de escala similar nos últimos anos.
– Que é necessário remunerar os concorrentes adequadamente a fim de se obter propostas corretamente desenvolvidas. Isso se reflete, sobretudo nos concursos em duas fases, por aqui muitas vezes a primeira fase é apenas curricular ou de apresentação de conceitos básicos. Na segunda fase se remunera segundo o nível das exigências. É bastante comum a seleção de equipes em base ao currículo, logo se remuneram as selecionadas com um anteprojeto com tempo suficiente para desenvolvê-lo.
Parece desnecessário comentar que se excluem por completo as licitações por menor preço.
Há pouco vi que algumas entidades brasileiras estavam defendendo o fim das licitações de arquitetura e engenharia por preço, porém fiquei surpreso ao ver que em substituição sugeriam realização de concursos de projeto executivo!! Pois assim segundo eles não haveria surpresa no preço da obra. Como já dizia Quatremere de Quince a 200 anos como pode-se exigir um projeto correto se não se remunera adequadamente?
Parece que ainda temos um longo caminho a percorrer, os concursos realizados no país são escassos e quando sai um se apresentam 100 equipes ou mais. Por outro lado são bastante recorrentes as notícias de que milhões ou bilhões em recursos do governo não foram utilizados por falta de projetos.