por Fabiano Sobreira [1]

A notoriedade é cega. Não a mesma cegueira que se espera da justiça, relativa à imparcialidade. Trata-se de uma cegueira que induz a posturas acríticas e que se baseia em um dos mais prejudiciais vícios cultivados pela Arquitetura: o culto à genialidade.

É da própria natureza da Arquitetura sua “dupla personalidade”, por vezes mal resolvida: uma disciplina que pertence, ao mesmo tempo, ao mundo subjetivo das artes e ao universo exato das ciências. Há muito se discute essa tensão dialética entre o projeto de arquitetura enquanto meio (instrumento técnico de mediação que tem como propósito final a construção) e como fim (objeto artístico, intelectual e autônomo). Cada lado dessa dupla personalidade desperta paixões e críticas, mas o seu vínculo cego com o mundo das artes tem trazido prejuízos ao próprio crescimento da profissão e questionamentos sobre a função pública da disciplina[2].

É um erro atribuir à Arquitetura uma autonomia e “imunidade artística” que mesmo nas outras artes (literatura, artes plásticas, música, fotografia, cinema…) é questionável. E mais importante: acima do interesse individual do artista está o interesse coletivo da sociedade, principalmente quando se trata da Arquitetura Pública[3].

Mas de onde vem esse poder mítico da Arquitetura, que – mais até do que em outras artes – coloca os arquitetos no posto de semi-deuses, imortais e intocáveis, por sua pretensa genialidade? A resposta está nesse duplo universo, que une o valor simbólico e material em um só “gesto”. Afinal, um monumento arquitetônico reúne – como nenhuma outra disciplina – o simbolismo apreciado das artes e a materialidade dos grandes empreendimentos; daí a sua importância e a sua utilização – bastante freqüente – como instrumento a serviço do poder e do totalitarismo.

A notoriedade e o culto à genialidade são heranças da monarquia, consolidadas na figura dos “arquitetos do rei”[4], personalidades ilustres que integravam o restrito grupo de pensadores e artistas notáveis em torno da Coroa. Eram os iluminados em um mundo – assim descrito – de poucos letrados; os conselheiros do Rei, responsáveis pela perpetuação material de um poder – por natureza, não por vontade – transitório. E entre todas as artes a Arquitetura sempre exerceu grande poder de perpetuação e de interferência sobre o imaginário coletivo.

A História nos diz que a monarquia caiu, junto com a Bastilha, e em seu lugar vieram os princípios de um novo espírito republicano, que entre outras utopias destacava a igualdade e o interesse coletivo, em lugar da soberania.

Sim, os princípios republicanos se estabeleceram, mas os “arquitetos do rei” persistiram e assumiram outras formas, e ainda são com freqüência utilizados como instrumento de perpetuação e poder. Algumas sociedades conseguiram manter na “república das artes” alguns instrumentos herdados do absolutismo, que sugerem a divisão da sociedade entre alguns poucos iluminados, de um lado, e uma massa de “ignorantes” do outro. O princípio da “notoriedade” é um desses artifícios.

Mas por que ainda resiste, na Arquitetura, esse culto à genialidade, tão nocivo à disciplina e à profissão? Por que essa crença cega no gênio e no notório especialista? Talvez pela esperança de ser o próximo. Afinal, os estudantes de arquitetura – no Brasil e no mundo – são tradicionalmente formados para exercitar a genialidade, para criar o extraordinário. Na universidade – em geral – aprendem que a arquitetura cuida do excepcional, e que o cotidiano é simples construção, e que a criatividade é um exercício individual e de auto-afirmação artística, raramente de colaboração e mediação. Cada vez mais arquitetos saem das universidades “prontos para assinar” o próximo grande monumento de uma metrópole global; porém pouco dispostos a resolver o problema da qualidade arquitetônica da escola pública do bairro.

No Brasil existem mais de duzentas escolas de Arquitetura e Urbanismo, onde estudam atualmente pelo menos 50.000 estudantes e onde se graduam cerca de 5.000 novos arquitetos a cada ano. Atualmente existem mais de 90.000 arquitetos no Brasil, para uma população de 180 milhões de habitantes (1 arquiteto para cada 2000 habitantes, o mesmo que na França ou na Inglaterra). Ainda assim, a Arquitetura parece ainda não ter encontrado o seu lugar como tema de interesse público. Quantos desses novos arquitetos que se formam a cada ano estão preparados para lidar com o cotidiano; quantos estão dispostos a “descer do pedestal” e a abdicarem do pretenso papel de “criadores geniais”, para exercerem o papel de mediadores competentes?[5] Quantos serão capazes de perceber que o projeto de Arquitetura é um instrumento (entre outros) e que a Arquitetura é apenas uma das disciplinas (e não a única) envolvida na produção do espaço público? Quantos estarão prontos para aceitar que, acima da propriedade intelectual da obra está o interesse coletivo?

O que é mais grave é que esse culto à genialidade, cultivado – como dissemos – pelos próprios arquitetos, tem se perpetuado na Gestão Pública como um artifício para a fragilização rito processual na produção do espaço público. Nesse processo de fragilização, o interesse pessoal se sobrepõe ao interesse coletivo e os gestores tratam de demandas públicas e coletivas como se fossem privadas e individuais. A notoriedade tem sido utilizada para tornar pessoal o que – por princípio – deveria ser baseado na impessoalidade; tornar informal o que por natureza demanda um rito formal; guardar entre quatro paredes o que se espera público e de ampla publicidade. Enfim, o culto à notoriedade e à genialidade faz com que o necessário debate sobre as questões de interesse público se concentre nas questões de ordem pessoal e, ainda mais grave, reproduz o antagonismo monarquista entre a cultura dos iluminados e notáveis da Corte de um lado e do outro nós, ignorantes, simples mortais, cegos, ofuscados pela luz que emana da genialidade.


[1] o autor é Analista Legislativo da Câmara dos Deputados (Seção de Acessibilidade e Projetos Sustentáveis – Núcleo de Arquitetura) e desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Laboratório de Estudos da Arquitetura Potencial (LEAP) –  École d’architecture de l’Université de Montréal sobre o tema Concursos de Projeto e Sustentabilidade. É professor e pesquisador do Dept. de Arquitetura e Urbanismo do UNICEUB, em Brasília.

[2] Sobre o tema da Função Pública da Arquitetura, vide textos publicados na MDC Revista de Arquitetura e Urbanismo n° 3, publicada em março.2006.

[3] Vide a esse respeito o texto de MACEDO, Danilo Matoso. “Algumas funções públicas da arquitetura.” MDC – Revista de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte/Brasília, n.2, p.14-21. fev.2006.

[4] Os ‘architectes du roi‘ (arquitetos do rei) integravam a Académie royale d’architecture da França e eram os responsáveis pela disseminação do estilo oficial e a produção da Arquitetura do reinado. Após a revolução e a queda da monarquia, no final do século XVIII, a Academia foi extinta, mas os princípios elitistas  continuaram com a Ecole des Beaux-Arts. BERGDOLL, Barry (1988). Competing in the Academy and the Marketplace: European Architecture Competitions 1401-1927. In LIPSTADT, Hélène (1988) The Experimental Tradition. Princeton Architectural Press.

[5] Para leituras sobre a relação entre monumentalidade e cotidiano, vide os textos publicados na MDC Revista de Arquitetura e Urbanismo n° 3, publicada em março.2006.