por Fabiano Sobreira (*)

Quanto maiores o valor simbólico e o interesse coletivo sobre um empreendimento, maior a possibilidade de conflitos de interesse em torno de seu processo de idealização e como consequência o rito processual do projeto se torna mais complexo.

Centre Georges Pompidou, em Paris, projetado por Renzo Piano e Richard Rogers, foi objeto de concurso internacional realizado em 1970, com a participação de 681 concorrentes de diversos países. Participaram do júri, entre outros: Jean Prouvé, Philip Johnson e Oscar Niemeyer. Um projeto de arquitetura de grande valor simbólico e que despertou intensos debates e controvérsias à época. Fotografia: Katsuhisa Kida – fonte: Richard Rogers Partnership.

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O nível de complexidade e de formalidade do processo de idealização na produção do espaço depende principalmente da natureza da demanda (se pública ou privada; se individual ou coletiva).

Quando se trata de demandas de natureza individual e privada, a intenção inicial é uma manifestação individual e particular e o processo entre a intenção e a idealização é informal e pessoal, sem publicidade e sem rito formal estabelecido. A escolha do profissional responsável pela fase de idealização é baseada no conhecimento pessoal e em consultas informais dentro de um círculo social restrito. O processo de julgamento, que culmina na escolha da idéia a ser desenvolvida, é baseado em decisões pessoais. O montante de recursos investidos no projeto e na execução é assunto de interesse exclusivo do empreendedor. A qualidade do espaço resultante interessa prioritariamente ao empreendedor individual e tem um impacto mínimo (em escala unitária) sobre o interesse coletivo[1]. E, finalmente, o número de atores envolvidos no processo é restrito e os conflitos de interesse nesse contexto são mínimos.

No outro extremo estão as demandas de natureza coletiva e pública, que por sua natureza, pertencem a um contexto de conflitos de interesse em potencial. Neste caso a rede de atores é complexa e o resultado do empreendimento tem sempre um impacto relevante sobre a coletividade.

Enquanto nas demandas de natureza individual e privada a intenção é uma manifestação de interesse particular e restrito, nas de natureza coletiva e pública toda intenção associada à produção do espaço é orientada por um conjunto de fundamentações baseadas – por princípio –  no interesse coletivo, e não no interesse individual. Essas fundamentações podem ser: (1) legais; (2) políticas e (3) técnica e conceitual.

A Fundamentação Legal limita e orienta o “poder discricionário” do gestor público, isto é, o seu poder e sua autonomia para tomar decisões inerentes ao seu cargo ou função. Tal fundamentação é baseada em princípios gerais típicos da Administração Pública em um Estado Democrático, que são, entre outros: isonomia, impessoalidade, publicidade, legalidade, transparência, qualidade e economicidade.

A Fundamentação Política é a tradução do complexo sistema de relações, interesses e decisões[2] que permeiam a gestão pública. Ao anunciar a intenção de desenvolver um projeto ou de executar um empreendimento, o gestor o faz com base em um respaldo político pré-estabelecido, que em geral é fruto de negociações em várias instâncias, envolvendo atores de diversos segmentos. Essa intenção, no setor público, se apresenta  como o espelho (mesmo que às vezes distorcido) do interesse coletivo. Nestes termos, a decisão de empreender, no contexto público, é parte de um projeto político mais amplo, que em princípio foi aprovado pela coletividade, mas que permanece sob avaliação e observação, em que pese a discricionariedade do gestor. É bem verdade que, a depender da estabilidade e da maturidade do sistema democrático em questão, da força das instituições que o integram, e da natureza do evento em discussão, essa interpretação sobre a fundamentação política e o interesse coletivo pode ocorrer de forma pacífica ou conturbada, consensual ou controversa, participativa ou totalitária.

Fundamentação Técnica e Conceitual – Entre a intenção preliminar (decisão política) e a idealização de um espaço ou de um objeto  público (o projeto propriamente dito), há uma série de informações que precisam ser definidas para garantir a qualidade técnica e a pertinência conceitual do empreendimento. Esse rito pode ser definido como programação[3], que é definida como o processo de descrição detalhada de determinada demanda espacial ou construtiva e sua contextualização (técnica, orçamentária, administrativa, ambiental, urbana, simbólico-cultural, etc…). A programação, portanto, é um detalhamento formal da intenção inicial, e uma etapa que precede e fundamenta o projeto (idealização). Trata-se da formulação precisa de uma questão, a ser respondida pelo projeto. Quanto mais precisa essa questão, maior a possibilidade de uma resposta projetual satisfatória. Ela sintetiza e traduz a multiplicidade de demandas (às vezes contraditórias) da intenção inicial.

Enfim, como podemos observar, as demandas coletivas e públicas são caracterizadas por uma tensão permanente de forças e de interesses nem sempre convergentes. Nesse contexto, a responsabilidade relativa às tomadas de decisão sobre questões de alta complexidade técnica e de relevante valor simbólico desafiam a discricionariedade do gestor. Esse é um dos aspectos críticos da idealização do espaço público: como definir, ao mesmo tempo, a melhor solução técnica e a melhor interpretação simbólica para problemas onde deve prevalecer o interesse coletivo ?

A tomada de decisões sobre demandas de alta complexidade técnica, porém de baixo valor simbólico, é mais objetiva e portanto menos suscetível a críticas e questionamentos. No entanto, quando a demanda pública combina complexidade técnica, alto valor simbólico, grandes investimentos e interesse coletivo, a responsabilidade sobre o julgamento cresce, assim como a demanda por formalidade do rito processual. Esse é o caso de boa parte das demandas relacionadas à produção do espaço público, e essa é a peculiaridade que define o lugar – crítico e delicado – da Arquitetura na produção desse espaço.

Daí a inquietação: como definir, na produção do espaço  que decorre de demandas coletivas e públicas, qual a idealização mais pertinente e que melhor responde ao interesse coletivo?

Como julgar a pertinência e a qualidade de uma resposta arquitetônica (forma, espaço, valor simbólico…) para uma demanda de espaço público e coletivo ? Qual o “melhor processo” para se obter a “melhor arquitetura” ?

Para lidar com toda a complexidade intrínseca à idealização do espaço público e gerenciar os potenciais conflitos de interesse, um dos caminhos formais utilizados pela Administração Pública, ao longo da História e nos dias de hoje, é o de tornar públicas as controvérsias e abrir o processo para que os profissionais se manifestem e apresentem suas interpretações sobre um mesmo problema arquitetônico, em um procedimento público baseado na confrontação de idéias. Este é o caso dos Concursos de Arquitetura: um processo de seleção que se baseia na confrontação e nas divergências, como caminhos para a convergência; um evento de natureza controversa, que é terreno fértil para a especulação criativa e para a confrontação de idéias, mas que também se revela como palco histórico de conflitos de interesse.

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(*) o autor é Analista Legislativo da Câmara dos Deputados (Seção de Acessibilidade e Projetos Sustentáveis – Núcleo de Arquitetura) e desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Laboratório de Estudos da Arquitetura Potencial (LEAP) –  École d’architecture de l’Université de Montréal sobre o tema Concursos de Projeto e Sustentabilidade. É professor e pesquisador do Dept. de Arquitetura e Urbanismo do UNICEUB, em Brasília.


[1] É fato que as iniciativas individuais, quando multiplicadas em escala de coletividade, resultam em impactos (positivos ou negativos) que despertam o interesse público. A falta de qualidade da unidade em si desperta pouco interesse coletivo, mas a soma das deficiências unitárias gera um incômodo coletivo.

[2] algumas explícitas e regimentais, outras subentendidas em negociações e lobbies corporativos ou empresariais. É bem verdade que em alguns casos essa fundamentação política é baseada muito mais em ações totalitárias e interesses individuais, habilmente disfarçados de democráticos e coletivos.

[3] Vide, a esse respeito, o “Guide de Sensibilisation à la Programmation“, publicação da Mission Interministérielle pour la Qualité des Constructions Publiques, França, Junho.2008.