Projeto Brasília 2060: 
por um planejamento estratégico, democrático e transparente

por Fabiano Sobreira (*) e Danilo Macedo (**)

O Governo do Distrito Federal (GDF) assinou, no dia 03 de outubro de 2012, contrato no valor de 4,25 milhões de dólares  para que a empresa Jurong Consultants, de Singapura, faça o planejamento estratégico do Distrito Federal para os próximos 50 anos – o Projeto Brasília 2060.

De acordo com informações do GDF (veja aqui a notícia publicada pela Secretaria de Comunicação Social do GDF em 03/10/2012), o planejamento estratégico criará uma espinha dorsal que integrará quatro grandes eixos: a cidade-aeroportuária; o polo logístico; o centro financeiro internacional e a ampliação do Polo JK. Ainda de acordo com o GDF:

em cada um desses locais será planejado um conceito de bairro-parque, em que as pessoas moram, trabalham, estudam e, sobretudo, se divertem. Tudo construído segundo ideias arquitetônicas próprias“.

Acima, imagens de projetos da Jurong Consultants para projetos urbanos na China (Dalian), Mongólia (Huolinguole) e Arábia Saudita (Sudair). A Jurong Consultant é uma empresa sediada em Singapura, com escritórios na China, na Índia e no Oriente Médio e com projetos e negócios em 148 cidades, em 46 países, nos mais diversos segmentos e escalas (Fonte: www.jurong.com).

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Em reação à iniciativa do GDF, o Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento do Distrito Federal (IAB-DF) encaminhou “Carta Aberta” ao Governo do Distrito Federal, solicitando esclarecimento sobre a forma de contratação. Ao mesmo tempo, foi lançada pela internet uma petição pública (veja aqui a petição), “pelo cancelamento da consultoria entre a Terracap e a Jurong Consultants”.

A contratação da consultoria pelo GDF é de fato questionável. No entanto, os argumentos contrários e as alternativas possíveis precisam ser elaborados com atenção, para que o assunto possa ter os desdobramentos éticos esperados. O texto que introduz a petição pública destaca como “desnecessária a contratação de estrangeiros para uma consultoria a fim de definir o futuro de Brasília até 2060” e alerta: “É temerário trazer estrangeiros que desconhecem a concepção urbanística de Brasília”. É preciso ter cautela para não cair na armadilha da xenofobia e do corporativismo.

O foco deve ser na transparência e no processo democrático. Ao invés de um contrato assinado a portas fechadas (seja de uma instituição internacional ou local), que sejam convocadas audiências e consultas públicas, e quando os objetos do planejamento envolverem arquitetura e urbanismo, que se realizem concursos: preferencialmente internacionais.

Acima, imagens do projeto do Capital Cities Planning Group vencedor do concurso internacional para a expansão do Distrito Federal da Rússia, em Moscou

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Deve-se ter atenção para, na tentativa de escapar da armadilha da notoriedade internacional, não cair na armadilha da notoriedade doméstica, igualmente danosa. Não há profissional ou instituição, no Brasil ou no exterior, cujo conhecimento acumulado ou portfolio de projetos justifiquem uma contratação exclusiva, por notória especialização, para planejar o futuro desta ou de qualquer outra cidade. Nem a Universidade de Brasília, nem a Jurong Consultants, nem o Capital Cities Planning Group (escritório que acabou de ser anunciado vencedor de um amplo concurso internacional para a expansão do Distrito Federal da Rússia, em Moscou).

Nesse sentido, vale relembrar as reflexões apresentadas no texto “Arquitetura e notoriedade: ensaio sobre a cegueira” (SOBREIRA, 2009), que questiona e coloca em discussão a inexigibilidade da licitação pública por notória especialização:

 “A notoriedade é cega. Não a mesma cegueira que se espera da justiça, relativa à imparcialidade. Trata-se de uma cegueira que induz a posturas acríticas e que se baseia em um dos mais prejudiciais vícios cultivados pela Arquitetura: o culto à genialidade. (…)O que é mais grave é que esse culto à genialidade, cultivado – como dissemos – pelos próprios arquitetos, tem se perpetuado na Gestão Pública como um artifício para a fragilização rito processual na produção do espaço público. Nesse processo de fragilização, o interesse pessoal se sobrepõe ao interesse coletivo e os gestores tratam de demandas públicas e coletivas como se fossem privadas e individuais. A notoriedade tem sido utilizada para tornar pessoal o que – por princípio – deveria ser baseado na impessoalidade; tornar informal o que por natureza demanda um rito formal; guardar entre quatro paredes o que se espera público e de ampla publicidade.”

Sobre essa mesma questão (da necessidade de um procedimento ético, democrático e transparente), vale também lembrar os argumentos apresentados no texto Concorrência Informal e Concurso Internacional (MACEDO, 2008), escrito no contexto das discussões sobre a contratação do projeto da Companhia de Dança em São Paulo por notória especialização:

“Frente às alternativas patrimonialistas e personalistas apresentadas até agora – protecionistas ou não -, não cabe outra recomendação aqui: o concurso internacional de arquitetura é a alternativa que melhor atende aos anseios legais e culturais dos brasileiros. Somente através de um concurso internacional se garantiria a contratação dos melhores profissionais do mundo – como querem os gestores públicos – com a legitimidade, transparência e legalidade que uma obra pública desse vulto exige. Somente assim nos livraremos desse arcaísmo nacional em que consiste a contratação de empresas de arquitetura sem licitação. E pelo concurso todo cidadão deve se mobilizar.  (…) para ajudar a constituir uma nova tradição no Brasil, que vá além tanto da mesquinhez da xenofobia quanto da submissão, e que de fato se equipare com o que há de melhor no mundo.”

Se os profissionais brasileiros (arquitetos, urbanistas, engenheiros, geógrafos, economistas, entre outras profissões interrelacionadas ao tema) somos capazes de planejar o futuro de nossas cidades (e de fato acreditamos que somos), não há por que temer a concorrência e a confrontação de ideias sobre o futuro de Brasília, em uma arena pública.

Afinal, a Brasília do futuro não pode resultar do exclusivismo e da suposta genialidade ou notoriedade de profissionais, empresas ou instituições – sejam de Brasília, do Brasil ou de Singapura – escolhidos em função do gosto pessoal e dos caprichos de gestores que aparentam pouco compromisso com a democracia e a transparência. Exatamente por se tratar de Patrimônio da Humanidade, é que a pergunta sobre qual será o futuro desta cidade, de tamanha relevância internacional, deve ser lançada de forma ampla e pública, e que possa acolher respostas sem fronteiras, em um planejamento que seja não apenas estratégico, mas acima de tudo democrático e transparente.

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Referências

SOBREIRA, 2009.  Arquitetura e notoriedade: ensaio sobre a cegueira. Revista concursosdeprojeto.org . Número 004. 2009.

MACEDO, 2008. Concorrência Informal e Concurso Internacional. Revista concursosdeprojeto.org. Número 001. 2008.

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(*) Fabiano Sobreira é arquiteto e urbanista, editor de concursosdeprojeto.org.

(**) Danilo Macedo é arquiteto e urbanista, editor da Revista MDC.