por Fabiano Sobreira (*)
Crise econômica, social, ambiental… Tempos de crise são também oportunidades para revisão de paradigmas, revisão das receitas prontas e experimentação.
Foi o que ocorreu na segunda década do século XX (vide ao lado a capa de um jornal londrino da época, sobre a crise de 1929) quando as pressões sociais, econômicas e industriais, diante de uma crise emergente, demandaram um novo modelo de consumo, uma nova forma de habitar e uma nova lógica de produção do espaço, dedicada prioritariamente ao atendimento das urgências sociais: habitação, renovação urbana, salubridade, racionalidade. Os arquitetos e urbanistas se aproveitaram daquele momento e transformaram a crise anunciada em uma revolução de idéias; converteram as demandas econômicas, sociais e industriais em novos princípios projetuais; foram além das urgências de ocasião e construíram utopias; converteram imposições externas em fundamentos teóricos; souberam – estrategicamente – sair da posição de reféns de um mundo em crise e assumiram o papel de protagonistas de um novo modelo social de produção do espaço. E assim nasceu o Racionalismo, o movimento Moderno… e o resto da história conhecemos bem. Mesmo os mais ferrenhos críticos reconhecem a importância dessa ruptura paradigmática para a construção dos modelos que ainda hoje orientam a construção das cidades contemporâneas.
Vivemos hoje, guardadas as devidas proporções, um momento semelhante. As pressões que se apresentam hoje sobre a disciplina no que se refere ao desenvolvimento sustentável guardam algumas semelhanças com as demandas por Racionalidade que marcaram a segunda década do século XX [1]. Assim como aconteceu há cerca de 80 anos, as pressões sociais, econômicas, industriais (e agora ambientais) demandam dos arquitetos e urbanistas de hoje uma nova ruptura de paradigmas, diante de uma iminente crise global.
São dois momentos de crise, distintos em seus enfoques, porém similares no que se refere às fortes demandas sociais sobre a disciplina e pela ascensão de novos modelos econômicos e industriais. No primeiro momento, tratava-se de construção de cidades racionais. Hoje, a demanda é pela gestão sustentável das cidades.
Mas as semelhanças param por aí.
A necessária revisão dos paradigmas, fundamental em momentos de crise, não está acontecendo na Arquitetura e Urbanismo de nossos dias. Aceitamos a crise com apatia e passividade, e ao invés de um projeto coletivo, mergulhamos na individualidade; no lugar de teorias e posturas críticas e propositivas, nossa resposta tem sido um discurso centrado em abstrações estilísticas, de pouco interesse social[2]. A nossa resposta às urgências ambientais, econômicas e sociais têm sido superficiais, pouco criativas. Tornamo-nos reféns de uma crise que se anuncia e perdemos a oportunidade de atuar como protagonistas[3] de um novo modelo de produção do espaço.
Há 80 anos os arquitetos e urbanistas souberam reagir à crise com criatividade e força propositiva, em um processo que levou ao fortalecimento da disciplina e da profissão.
Hoje as respostas à questão da sustentabilidade, por exemplo, apenas agravam a crise disciplinar e lançam ainda mais dúvidas sobre a autonomia da profissão.
Assim como o Racionalismo, a Sustentabilidade também não é uma invenção da Arquitetura e do Urbanismo, trata-se de uma demanda social externa e pré-existente, que espera por respostas que exigem reflexões que vão além do universo disciplinar. Mas ao contrário do que aconteceu com o “projeto racionalista”, o “projeto (que se diz) sustentável” tem se construído sobre um vazio conceitual, carente de reflexões e sem teorias que fundamentem a prática.
No início do século XX os arquitetos e urbanistas foram perspicazes, souberam dosar egocentrismo e altruísmo, anteciparam-se aos problemas e foram além, apresentando soluções que, mesmo quando utópicas[4], eram impregnadas de um discurso arquitetônico e urbanístico construtivo. A propaganda do racionalismo, mesmo que eventualmente movida por interesses individuais, era baseada em um projeto coletivo.
Hoje, quando se trata de uma proposta disciplinar à demanda por cidades sustentáveis, nossa resposta tem sido a proliferação de selos[5]; “branding” baseado no “star-system” (anglicismos inevitáveis nessa metáfora ao mundo publicitário); expressividade midiática de formalismos individuais… Enfim, falta perspicácia e antecipação, falta espírito coletivo e sobra promoção individual.
Os CIAMs, por exemplo, mesmo que duramente criticados a partir dos anos 60 pelo eventual descompromisso em relação aos valores simbólicos e à falta de contextualizações regionais[6], foram o principal palco da “propaganda racionalista”, onde os arquitetos – em primeiro grande exercício de globalização profissional – apresentavam ao mundo suas respostas à crise iminente[7]. Os congressos foram ao mesmo tempo instrumentos de propaganda da disciplina e ambientes de proposição teórica e prática.
No entanto, qual o palco atual para a discussão, que se faz necessária, sobre um modelo sustentável de produção do espaço ? Seriam as intermináveis feiras de novos produtos e novas “tecnologias sustentáveis” ?[8] Qual o lugar da Arquitetura e do Urbanismo nesses eventos? Falta conteúdo, falta uma teoria como suporte à prática. Nesse momento de crise econômica e ambiental a arquitetura perde, de fato, a oportunidade de atuar como protagonista na produção do espaço público, e segue a reboque, sem uma proposta clara, sem uma resposta confiável sobre como enfrentar os problemas…
O Racionalismo, por mais que tenha sido limitado no que se refere aos valores simbólicos e à diversidade cultural, permitiu utilizar as inovações industriais como instrumentos para a afirmação da Arquitetura enquanto disciplina: o aço, o concreto armado, a produção em série, os ensaios de modulação, as novas tecnologias de industrialização de componentes construtivos… Mas como a Arquitetura explora as inovações contemporâneas na sua afirmação disciplinar ? Células foto-voltaicas, coletores de águas pluviais, sistemas de automação, sistemas de pontuação e certificação, edifícios que giram em torno de si mesmos[9]… as imagens “espetaculares” dos projetos do star-system ?
Dynamic Tower, em Dubai. Projeto de David Fisher.
No século XX (no período entre-guerras e no pós-guerra) os arquitetos do “star-system” Moderno também migraram, circularam pelo mundo, buscando novos mercados, apresentando suas idéias. As peregrinações de Le Corbusier no Brasil, em 1929 (ano da primeira grande crise global) e em 1936, sem dúvida influenciaram positivamente a construção da identidade da arquitetura nacional (moderna e contemporânea).
croquis-propostas de Le Corbusier para o Rio de Janeiro
croquis-propostas de Le Corbusier para São Paulo
No início do século XXI, no entanto, quais propostas, utópicas ou práticas, que esperamos receber dos arquitetos do star-system contemporâneo ? Ressalvadas as raras e relativas exceções[10], nada além de metáforas que reforçam interpretações individualistas e o espírito de colonização de novos territórios, na onda do mercado global e do “franchising arquitetônico”. Como o comentário de Portzamparc, sobre suas contratações globais, ao declarar que o seu escritório “é uma aldeia e que está sempre em busca de uma nova baleia…”[11].
cidade da música – Rio de Janeiro – Portzamparc
Como então responder às demandas por cidades sustentáveis (economicamente viáveis, socialmente justas e ambientalmente corretas, segundo a definição clássica) que nos são apresentadas em tempos de crise? Talvez uma resposta – de impacto a médio e longo prazo – venha da revisão sobre a formação profissional, do projeto pedagógico.
O Racionalismo produziu a Bauhaus (e vice-versa) e suas “franquias” posteriores. Havia uma idéia por trás de uma “escola”, um projeto pedagógico por trás de um projeto social. Mesmo que o projeto de revolução social tenha se convertido posteriormente em uma cartilha de modelos estilísticos, não se pode ignorar a importância de seu projeto pedagógico no atendimento às demandas sociais, econômicas e industriais que emergiam.
Hoje, qual o projeto pedagógico da Arquitetura e do Urbanismo mais apropriado para lidar com o desafio da Sustentabilidade ?[12] Na discussão sobre a pós-graduação, vivemos o eterno conflito entre o fortalecimento da disciplina, de um lado, e a busca por diálogos transdisciplinares, do outro, como se fossem caminhos excludentes. Na busca por respostas aos desafios da sustentabilidade, qual o modelo acadêmico mais apropriado ? O modelo acadêmico norte-americano apresenta extrema segmentação disciplinar na graduação (arquitetura, urbanismo, paisagismo, design de interiores, como disciplinas independentes). No entanto, em muitos desses casos, o arquiteto recém-formado no contexto da compartimentação disciplinar encontra programas de pós-graduação em ambiente multidisciplinar e encontram dificuldades em lidar com a diversidade de enfoques que esse novo ambiente demanda. Alguns destacam que essa compartimentação é vital para o fortalecimento e amadurecimento da disciplina, pois concentraria os esforços de pesquisa em questões de interesse mais específico[13]. Mas, ao mesmo tempo, essa compartimentação tem trazido dificuldades para estabelecer o diálogo necessário para o desenvolvimento de pesquisas e projetos dentro do espírito de colaboração e diálogo (multi, inter) transdisciplinar, como aquele exigido pela Sustentabilidade, por exemplo. Do outro lado temos o modelo do arquiteto e urbanista como profissional de formação ampla e generalista (como no Brasil). Este modelo generalista, criticado por muitos, apresenta valores e possibilidades que hoje estão em falta no contexto norte-americano. Atualmente, muitas escolas de Arquitetura baseadas na compartimentação, diante da dificuldade de lidar com novas demandas de projetos e pesquisas baseados em ambientes de cooperação transdisciplinar, buscam cada vez mais de pesquisadores e professores que sejam capazes de articular bem um diálogo entre essas e outras disciplinas; e esses profissionais são cada vez mais raros.
Alguns diriam que a resposta está em voltar a atenção para o ateliê, dentro das escolas de Arquitetura e Urbanismo. Mas não é suficiente. O que se faz necessário (seja no ateliê ou fora dele) é o equilíbrio entre teoria e prática, entre generalistas e especialistas, orientados por uma postura crítica e reflexiva. Dentro ou fora do ateliê, é preciso investir em uma formação mais colaborativa e menos baseada – como já disse em outros textos[14] – na genialidade. A lógica tradicional do ateliê cria uma imagem de artista autônomo e solitário, que trabalha de forma isolada, em busca da obra-prima. Os gênios não colaboram entre si, nem buscam respostas ao seu redor. Os gênios já têm suas respostas e estão convictos delas; buscam apenas oportunidades de exposição. É preciso formar profissionais que estejam dispostos a atuar – sejam como protagonistas ou mediadores – em um ambiente de colaboração, em que a Arquitetura seja uma das disciplinas (e não a única) a tratar da produção sustentável do espaço das cidades contemporâneas.
Enfim, as crises são cíclicas, vão e voltam naturalmente, mas as respostas às crises não fazem parte desse ciclo natural… demandam esforço e muita criatividade.
Assim como se diz lá em casa: o melhor jantar é aquele “de crise”, quando faltam coisas na geladeira e na prateleira e a gente é criativo por necessidade e precisa inventar o novo com o que se tem à disposição… e o resultado são pratos saborosos, inesperados e até mais saudáveis do que aqueles com os quais estamos habituados na correria do cotidiano… Da mesma forma acredito que a arquitetura e as idéias que se produzem em tempos de crise são as mais inesperadas e frutíferas… e costumam ser as melhores… Mas é preciso usar a criatividade.
Afinal, nem sempre as receitas prontas funcionam, principalmente quando demandam ingredientes que faltam (mas não fazem falta) na nossa prateleira.
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(*) o autor é Analista Legislativo da Câmara dos Deputados (Seção de Acessibilidade e Projetos Sustentáveis – Núcleo de Arquitetura) e desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Laboratório de Estudos da Arquitetura Potencial (LEAP) – École d’architecture de l’Université de Montréal sobre o tema Concursos de Projeto e Sustentabilidade. É professor e pesquisador do Dept. de Arquitetura e Urbanismo do UNICEUB, em Brasília.
[1] O 1° CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna) ocorreu em 1928, liderado por Le Corbusier. Os CIAMs exerceram grande influência não apenas no que se refere aos princípios formalistas da Arquitetura Moderna, mas principalmente no que se refere ao papel da disciplina como instrumento de transformação social. Em 1929 estoura a grande depressão.
[2] Vide texto de Danilo Matoso (2009), publicado na MDC revista de Arquitetura e Urbanismo: Deixar de pensar no estilo – Considerações sobre o ofício da arquitetura no Brasil.
[3] Em texto publicado recentemente na revista AU, o arquiteto Fernando Luiz Lara propõe uma interessante reflexão sobre a “urgência da sustentabilidade como janela de oportunidade para a arquitetura”, em um contexto de crise ambiental e social. O autor faz um paralelo entre as reações contemporâneas ao tema sustentabilidade e a reação dos profissionais, na década de 80, às tecnologias computacionais no exercício do projeto e traça um breve histórico da pesquisa em arquitetura, destacando como “frustadas” as tentativas de pesquisa realizadas a partir da década de 80, que teria marcado – segundo o autor – o distanciamento da pesquisa em relação ao atelier. Mesmo divergindo do autor em relação a alguns de seus argumentos (como o enfoque prioritário no atelier e a crítica à produção científica dos últimos 30 anos na Arquitetura), consideramos tratar-se de reflexão oportuna e valiosa.
[4] As utopias nos ajudam a questionar os paradigmas, levar os conceitos ao extremo e depois voltar à realidade com um pouco mais de lucidez.
[5] Vide texto de Sobreira (2009), “Concursos e Sustentabilidade: os riscos da onda verde” , publicado no portal concursosdeprojeto.org.
[6] Jane Jacobs (1961): “Morte e vida das grandes cidades americanas”.
[7] Claro que Le Corbusier, para citar o principal agitador, não era o altruísmo em pessoa, mas ele soube associar interesses individuais a um projeto coletivo, de alcance global.
[8] Vide, por exemplo, o EcoBuild.
[9] Hoje alguns estudantes de Arquitetura e Urbanismo já dizem que não precisam se preocupar com orientação solar, por que ouviram falar de um projeto “fantástico” de uma nova torre em Dubai (Dynamic Tower, de David Fisher), que gira em torno de si mesma, de forma que não existem mais espaços voltados para nascente o para o poente. O fim da dor de cabeça com as cartas solares, com as preocupações de conforto ambiental… diriam esses estudantes.
[10] Podemos incluir na limitada lista de exceções algumas reflexões de Rem Koolhas em seu repertório de textos críticos sobre a arquitetura e a cidade contemporâneas. Vide, sobre o assunto, o texto de Clarissa Moreira, intitulado Desconstruindo Koolhaas – parte 1: P. MP.M. [pouco, muito pouco, mínimo] (Portal Vitruvius).
[11] Revista Piauí, Ed. 27, 2009.
[12] Vide, por exemplo, o projeto Verdir le Diploma (Greening the Curricula), promovido pelas escolas de Arquitetura do Canadá, e que trata da discussão sobre as revisões dos cursos de Arquitetura para adequação às demandas relativas à Sustentabilidade.
[13] Vide, sobre a questão pedagógica e disciplinar da Arquitetura, os textos de Chupin (2005) – A questão doutoral ou a globalização da epistemologia e da pesquisa em arquitetura; Marques e Veloso (2007) – A pesquisa como elo entre prática e teoria do projeto: alguns caminhos possíveis; Lara, Loureiro e Marques (2005) – Pensando a pós-graduação em arquitetura e urbanismo: Brasil, 2005; Sobreira (2008) – A desconstrução do princípio. Ensaio sobre o ensino do projeto de arquitetura; todos disponíveis na seção Arquitextos do Portal Vitruvius.
[14] Vide Sobreira (2008) em Deconstrução do Princípio: ensaios sobre o ensino do projeto e (2009) Arquitetura e Notoriedade: ensaio sobre a cegueira.
Parabéns pela forma como suas ideias foram expressas! Ótimo texto!
Adorei esse texto nao achei em nenhum outro site algo tao objetivo e ainda me ajudou a fazer o trabalho de escola…
Mais um artigo do NY Times, sobre Arquitetura e recessão. Leia aqui.
Depois de escrever o texto, fui em busca de outros escritos relacionados ao tema e descobri o excelente artigo de Michael Cannell, publicado no New York Times, em 3.jan.2009, intitulado “Design Loves a Depression” (acesse aqui) e que faz uma correlação semelhante entre criatividade e crise. Inclusive, em seu artigo, M.Cannell menciona o livro de Kristina Wilson, intitulado “Livable Modernism: Interior Decorating and Design During the Great Depression”. Vale a pena conferir.
Fabiano,
tenho comentado muito sobre isso com alguns amigos preocupados com a temática crise e as respostas de nossa categoria profissional. Sem dúvida, estamos canhestros quanto a dar solução, estamos ensimesmados.
Alterar este estado de espírito, quase de estima, é necessário. O momento para encaminharmos propostas (este é o cerne da nossa profissão) é justamente nos momentos de reflexão e mudança. esta é a nossa verdadeira tarefa: criar em tempos difíceis.
Cláudia Pires
Fabiano Sobreira,
Parabéns!! fazia um tempo que não lia um texto tão bom e tão próximo dos meus pensamentos sobre a arquitetura hoje…